Ricardo Musse: As guinadas de Jürgen Habermas

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Publicado Sábado, 20 de Outubro de 2012 às 00:50, por: CdB

Jürgen Habermas, a partir do final da década de 1970, dedica parte de seu esforço investigativo sobre a questão da modernidade. Longe de uma tarefa meramente acadêmica, essa escolha denota sua preocupação com um dos problemas cruciais de nossa época: a pertinência e atualidade do projeto Moderno.

Por Ricardo Musse*, no blog da Boitempo
Na trilha aberta por Max Weber, Habermas compreende como modernidade cultural a cissão da razão objetiva (que se expressava anteriormente na religião e na metafísica) em três esferas autônomas: a ciência, a moral e a arte.

A aceitação do modelo moderno das ciências experimentais e da moral, que confiam somente na racionalidade de seu próprio procedimento, como se tratasse de algo inelutável, conduziu Habermas a propor uma guinada radical na Teoria Crítica. Seus antecessores – Horkheimer, Benjamin, Adorno, Marcuse – opuseram-se à concepção weberiana de racionalidade, acusando-a de dificultar seu uso para uma determinação crítica dos fins.

Nesta guinada, efetivada tanto em sua obra mais alentada, Teoria do agir comunicativo (1981), como nas conferências reunidas em O discurso filosófico da modernidade (1985), Habermas dialoga ainda, em parte, com o corpus da Teoria Crítica, sobretudo se consideramos que procura delinear um diagnóstico da sociedade, nos moldes da teoria social marxista. Passa a incorporar, no entanto, no cerne de seu pensamento temas e princípios que a Teoria Crítica até então combatera com veemência, como a filosofia analítica, a fenomenologia heideggeriana e o pragmatismo.

Em Pensamento pós-metafísico (1988), um conjunto homogêneo de ensaios de circunstância, Habermas procura esclarecer, por meio de estudos localizados ou de análises globais da história da filosofia, alguns dos tópicos principais de sua filosofia. Embora presentes, ocupam um segundo plano tanto antecipações de assuntos que foram desenvolvidos em suas investigações posteriores, como é o caso da moral, do direito e da estética, como a própria linha de continuidade temática delineada pelas obras anteriores.

Para escapar das controvérsias geradas pela polêmica acerca da pós-modernidade, Habermas define, de antemão, sua filosofia como pós-metafísica retomando e, de certa forma, ultrapassando o termo contra o qual a modernidade como um todo cerrou fileiras.

Pós-metafísico significa, para Habermas, como indica o título de um dos artigos, um deslocamento do horizonte da modernidade. Essa constatação é justificada por meio de uma lista de características do pensamento do século 20: (a) um novo modo de situar a razão; (b) a guinada linguística e (c) a inversão do primado da teoria frente à prática, isto é, a superação do logocentrismo.

A descrição que Habermas desenvolveu procurando mostrar o modo como as premissas do pensamento metafísico vigente até Hegel foram sepultadas, uma a uma, pelo desenvolvimento histórico, podem ser compreendidas também como uma espécie de introdução ao seu projeto filosófico.

(a) O novo tipo de racionalidade metódica gerado pelas exigências de fundamentação da filosofia da natureza e do direito natural colocou em questão o pensamento totalizador, voltado ao uno e ao todo, e com ele o conceito forte de teoria, que pretendia tornar compreensível, a partir de estruturas internas, não somente o mundo dos homens, mas também a natureza.

O fim do privilégio atribuído ao conhecimento filosófico altera por completo o nexo entre ciência e filosofia. Abalada em sua pretensão de ser uma ciência primeira, a filosofia corre o risco de se perder, seja quando mimetiza as ciências particulares, seja quando se distancia demasiado delas.

Segundo Habermas, restam ainda, porém, duas funções que tornam a filosofia imprescindível para o sistema das ciências. Primeira, como garantia, por seu questionamento universalista, da possibilidade de reconstrução de uma teoria da racionalidade. Segunda, ela se coloca também como “um intérprete que faz a mediação entre as culturas especializadas da ciência, da técnica, do direito e da moral, de um lado, e a comunicativa cotidiana, de outro – de modo semelhante ao que acontece na crítica da literatura e da arte que realizam a mediação entre a arte e a vida”.

(b) A crítica da filosofia concentrada nas relações sujeito-objeto conduziu a uma mudança de paradigma – da filosofia da consciência para a filosofia da linguagem. Adota-se como ponto de partida não mais a autoreferência de um sujeito que representa e manipula objetos, mas as condições de compreensão das estruturas gramaticais. Concedendo-se aos sinais linguísticos um estatuto diverso da sua anterior situação de meros instrumentos das representações, transfere-se a tarefa de constituição do mundo da subjetividade transcendental para estruturas gramaticais.

No entanto, Habermas adverte que a simples substituição da relação sujeito-objeto por relações entre linguagem e mundo não é suficiente. Convém ainda complementar a teoria da linguagem orientada pela compreensão da proposição, por meio de uma teoria que – levando em conta a pragmática da linguagem – dirija-a para os protocolos por meio dos quais os falantes se entendem mutuamente sobre algo, ou seja, para o agir voltado ao entendimento. Trata-se, portanto de acrescentar à guinada linguística uma guinada pragmática.

(c) A inversão do primado da teoria frente à práxis destaca a inserção das realizações teóricas em seus contextos práticos de formação e de aplicação. A determinação destes contextos varia de acordo com a coloração do espectro filosófico. No entanto, para Habermas, é possível extrair algo de comum entre o marxismo ocidental, a fenomenologia, o pragmatismo e a psicologia de Piaget – segundo ele, todos apontam para os contextos cotidianos do agir e da comunicação.

Assim, resta à filosofia um privilégio e uma tarefa. Por sermos capazes de linguagem e de ação, temos, na definição de Habermas, antes de qualquer ciência, um acesso interno ao “mundo da vida” simbolicamente estruturado, ou seja, aos produtos e competências de indivíduos socializados. Mas a filosofia também pode, por isso mesmo, utilizar-se deste saber e contribuir para que se adquira consciência das desfigurações e deformações das formas de vida estabelecidas.

*Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas.

 

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