Quando o diálogo e o cuidado são a arma de governar

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Publicado Quinta, 09 de Fevereiro de 2012 às 12:03, por: CdB

"Convivi três anos com os moradoresdo local e posso afirmar que, ao contrário do que se imagina, não haviaausência de regras ou desordem de qualquer tipo. Muitos dos chamados ‘ladrões’ou ‘vagabundos’ cumpriam uma dupla jornada de trabalho. Após trabalharem emseus empregos, que garantiam seu sustento e o de sua família, organizavamreuniões, assembléias, mutirões e votações para manter a ordem e paz no lugar,organizar o terreno e tomar decisões. Durante todos os anos de existência doacampamento, não foi registrada uma morte sequer no local. Ao invés devagabundos, o movimento se constituía num microcosmo de atuação democrática.Por meio desses estereótipos, o governo insiste em impedir o acesso dessapopulação a um de seus direitos básicos, o de moradia.”

Esteé o depoimento do antropólogo Inácio Dias de Andrade que, durante três anos, de2007 a 2010, manteve convivência diária com os 7 mil habitantes da comunidadede Pinheirinho, São José dos Campos, São Paulo (Ver em www.sul21.com.br -Pinheirinho: para além da Desocupação).

Osocupantes da área lá estão desde o início de 2004. O que os moradores querem étransformar um terreno sem função social numa Zona Especial de InteresseSocial, regulamentada por uma série de leis, "uma reivindicação justa enecessária’, segundo o antropólogo. "Ainda mais quando se considera o déficithabitacional que a cidade de São José dos Campos sofre há anos e que aprefeitura insiste em contornar com políticas paliativas.” E acrescenta InácioDias de Andrade: "Dito isso, faz-se necessário dizer que os moradores do localnão procuram viver na ilegalidade. Estão dispostos com essa mudança a pagarIPTU, água, luz e todas as demais taxas municipais. Ao contrário do que sepensa, eles não querem viver privilegiadamente. Eles querem ser inseridos numaordem urbana que sempre lhes foi desfavorável”.

Ogoverno federal começou a acompanhar os acontecimentos de Pinheirinho no iníciode dezembro de 2011, quando os moradores e o MTST (Movimento dos TrabalhadoresSem Teto) pediram uma reunião. A Secretaria Nacional de Articulação Social(SNAS), da Secretaria Geral da Presidência da República, foi atualizada sobre oandamento e situação da ocupação. Os moradores pediram apoio e solução para asua situação.

Durantetodo mês de dezembro, a SNAS dialogou com a Secretaria de Habitação e aassessoria do prefeito de São José dos Campos, manifestando a possibilidade deutilização de programas do Ministério das Cidades para atender e consolidar aocupação, evitando a desocupação. Uma parceria da prefeitura com o governo doEstado de São Paulo permitiria transformar a área em Zona Especial de InteresseSocial – ZEIS e a adesão aos programas habitacionais do governo federal.

Eminício de janeiro de 2012, o Ministério das Cidades encaminhou ofício à Justiçasolicitando adiamento da reintegração de posse por 120 dias, tendo em vista apossibilidade de negociação e entendimentos entre município, Estado e governofederal.

Diasdepois, governo federal e estadual, junto com a OAB, apresentaram à prefeituraum protocolo de intenções com a responsabilidade de cada ente federativo. Amedida impediria a desocupação.

AAdvocacia Geral da União (AGU) preparou ação cautelar para impedir areintegração de posse da área, aceita num primeiro momento pela Justiça eposteriormente cassada.

Parlamentaresfederais e estaduais conseguiram a assinatura de um acordo que prorrogava por15 dias os atos de reintegração de posse, na perspectiva de viabilizar umacordo entre os entes federativos.

Depoisde todos estes encaminhamentos, do diálogo estabelecido por diferentes atores,houve, contudo, em 22 de janeiro, domingo, a reintegração de posse, sem avisoprévio ao governo federal, com enorme repercussão nacional e inclusiveinternacional.

Emsucessivas reuniões e tratativas, o governo federal, através da AGU, doMinistério das Cidades, da Secretaria Geral da Presidência da República eSecretaria de Direitos Humanos, continua empenhado em achar uma solução para osmais 6 mil moradores do Pinheirinho, desalojados, hoje sem casa, alojadosprecariamente em casas de parentes, em igrejas e salões comunitários ourecebendo passagens para voltarem a seus estados de origem. Estão sendo feitosestudos para buscar áreas da União disponíveis na região, com condição deviabilizar moradias. Ou ainda a desapropriação da própria área do Pinheirinho,os moradores voltando ao lugar onde moravam desde 2004.

Quandonão impera o diálogo, mas a força, quando o lucro do capital fala mais alto queo direito dos pobres, quando a violência é a última solução, quem perde é ademocracia, quem perde são os mais necessitados, quem perde é a vida e adignidade humana. Um governo pode ser amigo dos pobres e buscar solução dosseus problemas. Um governo pode agir com truculência ou com negociação. Umgoverno pode cuidar de seu povo ou favorecer os fortes.

Nofinal de 2006, em um discurso emocionado, Lula disse no Palácio do Planalto,numa solenidade com o então ministro Gilberto Gil: "A palavra governar, talcomo é pensada, dificulta a gente fazer da ação do governo uma coisa maissimples que é cuidar. Você pode ter o dinheiro do mundo, se você não tiverhumildade e sensibilidade para fazer as coisas florescerem, desabrocharem comoum botão de rosa, o dinheiro não vai valer nada. O dinheiro, ao invés deproduzir cultura (ou justiça, grifo meu), pode produzir um monstrengo (ouviolência, outro grifo meu), como nós já cansamos de ver em outros momentoshistóricos deste país. E quando eu digo a palavra cuidar, é que você cuidadaqueles que, muitas vezes, os que governam não sabem que existem ou, se sabem,sabem por um número estatístico, não conhecem as suas caras, nunca apertaram amão deles, nunca visitaram a casa de um deles. Então, até podem dizer: euconheço, mas não conhecem. Porque saber o que é uma dor de barriga não é omesmo que sentir a dor de barriga. Então cuidar do país e de seu povo é isso.As coisas já estavam aí, era preciso apenas tirar o carrapicho, capinar, comodiz o bom lavrador brasileiro, e deixar a boa muda florescer.”

Emnove de fevereiro de dois mil e doze.

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