O governo Dilma acabou

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Publicado Segunda, 02 de Novembro de 2015 às 13:01, por: CdB
Por Moysés Pinto Neto, de Porto Alegre:
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Esse texto escrito há dois meses não envelheceu, o óbito do governo Dilma é cada vez mais evidente
O Governo Dilma acabou. Sei que muitos amigos irão ficar irritados com a minha afirmação, talvez até dizendo que colaboro com o golpismo, mas nesse caso estariam apenas matando o mensageiro. Não vibro com isso: sempre torço para estar errado nos meus diagnósticos e prognósticos pessimistas, ainda mais considerando que milhões de brasileiras e brasileiros votaram em Dilma Rousseff. O fim do governo é simplesmente um fato. É impossível executar um projeto sem a mínima base política. E o governo atual não tem, simplesmente, base política. Não adianta chamar de burros ou coxinhas os detratores. É gente demais para caber no rótulo. Obviamente, há muita gente burra e muitos coxinhas fazendo a festa, aproveitando a crise política para defender ideias estapafúrdias como a volta da ditadura ou destruir as conquistas em termos de direitos civis da Nova República. São muitos, mas é demais generalizar. É muita gente contra. Ontem mesmo foi publicada pesquisa dizendo que, entre os petistas, 40% considera o governo péssimo ou ruim.1 em cada 3 petistas admite o impeachment. Dilma continua erraticamente usando exatamente a mesma estratégia que usou nos últimos anos, com destaque para as últimas eleições: pratica um jogo ambivalente em que toma medidas que agradam os setores mais poderosos da sociedade, buscando uma trégua, enquanto deixa seus pittbulls da mídia governista comandarem a militância usando a retórica do “nós” contra “eles”. Essa estratégia ficou clara quando vazou o memorando no qual os “blogs progressistas” são considerados carros-chefe da comunicação do Planalto. Evidentemente, está completamente equivocada, pois o lado beneficiado não se reconhece como tal na medida em que é atacado discursivamente como “o inimigo” e ao mesmo tempo tampouco tem qualquer simpatia pelo governo. Do outro lado, aqueles que o sustentam discursivamente se veem o tempo todo desmentidos pelos fatos, sem poder alegar a favor do seu discurso nada a não ser uma noção substancialista de identidade de esquerda que residiria na estrela petista. Quanto mais aumentam as concessões, mais forte fica o outro lado, que por sua vez sempre acha pouco o concedido e passa a atacar — agora, com a queda de popularidade — a fim de se colocar na cabeça do programa. Do outro lado, minguam as justificativas dos apoiadores, constantemente vendo-se constrangidos com escolhas como Kátia Abreu e Eliseu Padilha, e quanto mais defendem mais podem ter certeza de que o governo fará menos para ajudá-los a demonstrar seus argumentos. É incrível como algo que vem dando errado há tanto tempo – desde 2013, pelo menos — continua sendo repetido ad nauseam, sem que haja qualquer sinal de mudança de rumo. Não adianta dez milhões de pessoas dizerem que a estratégia está toda errada, ela vai se repetir até o fim. Passo a chamar, a partir de agora, de estratégia zumbi. Não existe qualquer chance de uma “virada à esquerda”, como alguns crédulos continuam sustentando. Não existe fundamentalmente por duas razões, uma conjuntural e outra estrutural. A conjuntural: o PT não teria cacife político para bancar, hoje, uma virada dessas. A esquerda está totalmente dilacerada e fragmentada por múltiplas razões e por isso não teria condições de apoiar consistentemente uma iniciativa dessas. Além disso, a maioria da sociedade não é de esquerda, e — importante dizer isso — nem de direita, ao menos não no sentido forte. Se é verdade que a maioria pende ao conservadorismo, isso não quer dizer que a maioria esteja afinada ideologicamente com a direita. A maioria simplesmente segue aquilo que pragmaticamente, nas circunstâncias, parece melhor para si. O próprio PT provou isso com a ampla maioria conquistada no apogeu do lulismo. Naquele momento, com 80% de aprovação, apareceu o verdadeiro tamanho da “direita”, que é mais ou menos o mesmo da “esquerda” propriamente dita. Esses rótulos, que envolvem a formação de identidade ultrapolitizada, não formam uma massa consistente no bolo geral da sociedade. Aliás, esse foi o duplo erro cometido pelo PT e depois por segmentos que sustentaram o legado de Junho: investir na identidade de esquerda e polarizar a sociedade em duas substâncias, como se não existisse entre elas uma fatia permeável que varia sua posição conforme as circunstâncias. A virada para a extrema esquerda dos movimentos provocou a diminuição do seu tamanho, voltando ao âmbito de organizações de pressão que podem vencer uma ou outra disputa, mas não consegue metonimicamente tomar o lugar do “povo”, ou do que se queira colocar ali. O discurso petista que recrudesceu a partir de 2006, com o “nós” contra “eles” eleitoral, acabou conduzindo o país a um extremismo que hoje pende para a oposição. Quase ninguém mais quer estar do lado do “nós” governista. A razão estrutural é que o PT não ocupa mais esse lugar de fato. O que chamamos de PT hoje é um bloco dividido entre uma direção vertical, burocrática e autoritária que toma as decisões e uma militância de longa estrada que permanece presa nos sonhos de progresso social nutridos ao longo das últimas três décadas. A primeira parte é totalmente determinante em termos de ação. O PT é comandado de cima. O ponto de inflexão dessa mudança não foi — como sustentam alguns — a “Carta aos Brasileiros”, de 2002. Ali, havia muita coisa em aberto e talvez a solução encontrada pelo lulismo tenha sido uma saída inteligente para a eterna aporia do “como governar pela esquerda?”. Enfim, há quem pense diferente. No entanto, o certo é que 2013 — no auge da popularidade — o PT preferiu fazer parte da constelação pemedebista ao aliar-se ao baixo clero da política e desperdiçar a chance de enfrentar e servir de referência para a transformação do sistema. A ferida do Mensalão, julgado pouco tempo antes da emergência dos movimentos, colocou o petismo em posição reativa e desprezou a potência que despertava em 2013. Hoje, esse baixo clero da política — que por vezes eu e outros comparamos ao escorpião da fábula — hoje não precisa mais estar aliado a uma cabeça (nomeada na época por Marcos Nobre de “síndica” do condomínio pemedebista) que era tolerada devido aos altos índices de popularidade. Para realizar essa manobra, o governo do PT se desconectou das bases sociais emergentes do próprio lulismo e tornou-se definitivamente uma tecnocracia que comanda “desde cima” a sociedade, perdendo base política (hoje reduzida ao “proletariado” tradicional do capitalismo fordista que fora essencial para sua formação). Sem essa sustentação, desprezada arrogantemente pelo governismo, não há lastro político para um enfrentamento direto das oligarquias políticas e econômicas. O nível de barganha acabou e o que resta, então, é exatamente esse corpo isolado que jaz no Palácio do Planalto. A questão hoje para o Governo é apenas como terminar o mandato. A formação de um gabinete de crise, com Lula talvez ocupando uma posição de protagonista, é a última carta na manga que resta, mas ela não terá a força de ressuscitar o PT, apenas de prorrogar uma sobrevida até 2018. Uma derrota esmagadora cultivada a partir da estratégia zumbi. A escuta que nos últimos tempos tem pautado as notícias sobre o Planalto são absolutamente insuficientes diante da surdez que predominou nos últimos anos. Está claro que se a esquerda brasileira quer continuar viável, é necessário enfrentar o PT como parte do que está errado. O “voto crítico” das últimas eleições, ao bloquear a alternativa Marina Silva como saída do lulismo e sustentar, apesar de tudo, todos os erros que vem sendo praticados há longos anos é o último bastião da resistência governista. Mas é preciso que as pessoas que estão nessa posição — muitas respeitáveis, muitos amigos e pessoas que respeito — percebam que estão afundando a esquerda como um todo ao lado do PT. Quanto maior a insistência, maior é a captura dos afetos políticos por tendências conservadoras e maior o risco de se ver desmoronar alicerces institucionais importantes que — para além do PT — fizeram do Brasil um país um pouco menos indecente em relação à cidadania. Na Espanha, a ascensão dos indignados gerou o efeito imediato de eleger um governo conservador. Hoje, contudo, vê-se a “aposta municipalista” como um processo descentralizado de construção de um novo modelo de experimentação política e social. Para isso foi necessário se livrar de velhos fantasmas, sair da zona de segurança na qual o governismo crítico se instala toda vez que se vê confrontado pela direita. O Brasil está próximo de eleições municipais. Quais são as alternativas que estão sendo gestadas para a construção de um novo projeto coletivo depois que o lulismo ruiu, perdeu o apoio da maioria da população? Quais são as chances disso acontecer quando aquelas vozes dissonantes da sociedade continuam apegadas a um projeto que rasteja na esfera pública, agonizando seus últimos atos? Deixo para outro post essas reflexões, mas o próprio “recebimento da herança” do petismo, entendido não nos moldes que Lula e José Dirceu consolidaram, como uma direção forte e vertical em busca do poder central, mas do petismo como um arranjo participativo e criativo que se construiu em algumas cidades ao longo da década de 90, de baixo para cima, não poderia ser reinventado sem precisar sustentar o entulho que se acumulou nos últimos anos, respirando fora da caixa petista? Entender isso me parece ser o primeiro passo de saída de um luto necessário, mas cuja duração já cai na melancolia que hoje é facilmente estraçalhada por redes de ódio que se disseminam por todos os lugares. A indignação não é injusta, ela é o fermento para uma nova invenção. PS: São tantos os créditos deveriam ter sido dados nesse post vindos de trocas e conversas que acabei não linkando quase nada. Peço desculpas às amigas e amigos que me ajudaram a pensar isso. Moysés Pinto Neto, doutor em Filosofia pela Universidade Católica do Rio Grande do Sul, professor na Faculdade de Direito da Universidade Luterana do Brasil, Porto Alegre). Direto da Redação é um fórum de debates editado pelo jornalista Rui Martins.
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