Mal-assombro do chapelão

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Publicado Sexta, 08 de Agosto de 2003 às 07:13, por: CdB

A velha esquelética do chapéu grande, figura que representa a fome no imaginário dos sertanejos mais velhos, ainda persiste naquele município banhado pelo São Francisco. E mete medo, mal-assombro dos diabos, em muita gente. Como Pastor Alves da Silva, 43 anos, pai de seis filhos, que reclama da carestia dos alimentos. Sobrevive do que pesca em uma pequena barragem na cidade.

"Eu sei quanto custa a vida do pobre, quando pego peixe de sobra vendo de acordo com a situação do freguês", conta o delmirense. "Mas os cabras da feira e do comércio botam é pra arrombar, pra tirar do ramo, pra tirar o couro de verdade".

O pescador mora no Ponto Chic, irônico batismo de vila nos arredores mais miseráveis de Delmiro Gouveia, uma das áreas que concentram maior número de beneficiados do programa Fome Zero, que já atende 2.850 famílias no município. "Aqui, o pai de família responsável ainda esquenta muito o juízo para botar o de comer na beirada do fogão. Com essa ajuda, que também vou ter direito, a gente pode trabalhar não só pra encher o bucho, mas pra tentar ter uma vida mais arrumadinha", diz Pastor, que é nome mesmo, não função evangélica.

O programa do Mesa (Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome), segundo o comitê gestor encarregado das suas ações na cidade, procura associar-se cada vez mais a atividades produtivas, marca do município, incentivando criatórios de peixes, oficinas caseiras de fabricação de vassouras e de aproveitamento de lixo reciclado.

Vaneide de Brito, 32 anos, é mãe de Janeide, 9, Renata, 6, José Vitor, 4, e Rafael, de três meses. Ela faz vassouras em casa para ajudar a sustentar a família. Herdou o ofício do pai, José Brito da Silva, 54, que "anda desgostoso da vida" depois da morte da mulher, Sebastiana, no ano passado, e nunca mais voltou a mexer com a mercadoria. Prefere sair, tentar qualquer bico na rua, para fugir das lembranças caseiras.

"Se tiver mais vontade, com incentivo para compra do material e acabar a desunião aqui no Ponto Chic, a gente sai do buraco", aposta Vaneide nas ações do Fome Zero voltadas para a organização do trabalho. "Vassoura sai bem, pois o povo gosta dessas bandas é muito asseado, gosta muito de tudo limpo".

Os mais velhos atribuem esse zelo também a Delmiro Gouveia. A sua preocupação com os hábitos de higiene no antigo povoado de Pedra era grande. Uma cusparada em local público, lembra o pesquisador e historiador Frederico Pernambucano de Melo em texto para a revista "Continente" (Recife), valia advertência e multa em benefício de uma caixa de interesse comum dos empregados da sua fábrica.

A preocupação com limpeza e assuntos do gênero se mantém mesmo até hoje. A ponto de um morador estampar uma advertência, em letras chamativas, em uma parede do centro da cidade: "Senhores visitantes de Delmiro Gouveia, cuidado para não ter uma dor de barriga, pois não temos sanitários públicos".

Além de não tolerar sujeira, por isso implantou uma espécie de código do bom-tom no município, Delmiro também não permitia o uso de armas de fogo em seus domínios. "Em Pedra, homens e animais _ exceto bois, porcos e galinhas _ só quem mata é Deus", pregava.

Delmiro foi vítima de emboscada de cangaceiros a serviço de coronéis incomodados com o poder do empresário. "E o que se vê, em 1917, naquele tenebroso 10 de outubro, é nada menos que a morte do futuro pelas piores energias do passado", diz o historiador.

Xico Sá é jornalista e participa do Projeto “Nova Geografia da Fome”, junto com o fotógrafo U.Dettmar

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