Jovens sertanejos conhecem história pela TV

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Publicado Quarta, 06 de Agosto de 2003 às 06:39, por: CdB

As novas gerações da rota de Antonio Conselheiro, no triângulo entre os municípios baianos de Monte Santo, Euclides da Cunha e Canudos, desprezavam a história da região até que a saga voltasse pelo cinema e pela TV. O barulho das efemérides reverbera mundo afora, como os centenários do massacre (1997) e do livro “Os Sertões” (2002), mas não tem o mesmo badalo naquela caatinga, a babilônia de taipas destruída pelo Exército republicano. “Num é só coisa da mocidade, 12, 15 anos atrás, muita gente por aqui ainda tratava os “conselheiristas” como jagunços, doidos varridos que lutaram contra a ordem, a lei, uma história que tentaram afogar de qualquer jeito”, faz bom sermão José Américo de Amorim, 37, poeta que esclarece: “É minha ocupação, sim senhor”.

Afogar? É o inconsciente de Amorim que narra a forma como o açude de Cocorobó, obra da ditadura militar (1964-85) que encobriu, desde 1969, a velha vila do Conselheiro, que agora só mostra uma ou outra cumeeira em tempos de seca braba. “Por que fizeram tanta questão de construir a parede do açude logo ali? Num poderia ser um pouquinho mais adiante ou mais atrás?”, assanha o debate. Mais um motivo para que os moços, pobres moços, não cresçam colados a uma memória cada vez mais condenada a museus. “É ridículo que a gente, daqui do lugar, conheça tudo através de pedaços de escombros, restos de pedras e tijolos, como se fosse um muro de Berlim”, diz o poeta, em prosa escorreita.

Até mesmo o Memorial Antonio Conselheiro, em Canudos, carece do cinema para animar-se. A principal atração é um boneco com o mesmo figurino que José Wilker usou no filme “A Guerra de Canudos”, do diretor Sérgio Rezende. Nada como deixar o poeta falar mais uma vez: “Nossa história é muito proibida, o próprio regime militar fazia de tudo para enterrá-la definitivamente, louco é que os jovens se interessem no momento em que a coisa voltou pela mídia, a mesma imprensa que sempre tentou destruir a rebeldia”, diz Amorim.

Grandes sertões, dialética. Conselheiro volta para os jovens pela valoração televisiva da modernidade. “Os meninos não acreditam nos mais velhos, precisam ver na televisão, artista falando, artista representando, para acreditar na importância desse lugar”, verbaliza Joselina Oliveira Rabelo, de 57 anos. É filha de remanescentes da guerra de Canudos e dona de um hotel, casa que serviu de antigo acampamento do DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contras as Secas) durante a construção do Cocorobó.

Tem mais gente com a mesma crença. “Achava que era história de trancoso”, diz José Vieira, 18 anos, de Euclides da Cunha. Trancoso é narrativa de fábulas exageradamente mentirosas, coisas contadas por avós para fazer netos dormir. “Foi só passar filme e reportagens na televisão e os meninos apareceram aqui, coisa que nunca tinha havido”, conta Angelita Souza, também jovem, 23 anos. Faz questão de posar, paradinha que só ela, na frente do cartaz de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, na recepção do Museu do Sertão, em Monte Santo, onde é guia da história local. “É ruim que a gente precise da TV para chamar a atenção do povo mais novo, mas também é bom que alguma coisa tenha acendido essa turma pra conhecer mais a batalha que se deu aqui, tanta morte, meu Deus, mas tanta reza, tanto ensinamento”.

Os sertões, cada vez mais dialéticos, entre as ruínas e parabólicas que ocupam telhas mais humildes, seguem como um desconhecido mar de histórias.

Xico Sá é jornalista e participa do Projeto “Nova Geografia da Fome”, junto com o fotógrafo U.Dettmar

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