Idéias e poder

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Publicado Domingo, 30 de Novembro de 2003 às 21:11, por: CdB

Ao publicar uma antologia de seus discursos, Carlos Lacerda deu-lhe o título de "O Poder das Idéias". As idéias de Lacerda eram dinâmicas, posto que eram mutantes. O jovem comunista de 1934 se tornou um dos ícones da ação conservadora no Brasil, aliado dos americanos contra Vargas, contra Juscelino, contra Jango. Quando o feitiço virou-se contra o feiticeiro, ao ser rejeitado pela ditadura militar que fomentara e apoiara, Lacerda buscou compor-se com os líderes nacionalistas no exílio, na tentativa da "frente ampla", que se frustrou, privada de apoios militares e políticos. Mas não se negue força ao título. As idéias têm poder, desde que haja idéias.

De idéias anda escasso o Parlamento. De idéias reais, concretas, são jejunos os partidos políticos. Por isso, a partir da inegável capacidade de Fernando Henrique em dar férias às doutrinas políticas, não tem sido difícil ao governo - a qualquer governo, pelo que parece - obter o que pretende do Congresso, em nome da razão prática. O pragmatismo exige a reforma da Previdência - e as idéias, mesmo as do PT, pedem licença para deixar o plenário, contemplar as águas que cercam o grande conjunto e, provavelmente, fumar ao ar livre.

Se a senadora Heloísa Helena tem razões práticas para opor-se à reforma da Previdência, ou se é orientada apenas pelas suas idéias de esquerda, não sabemos. Mas o que parece - e, em política, o que parece é tudo - a sua emoção ao negar apoio ao governo, no caso da Previdência, era sincera. Ela, que sempre acompanhara o seu partido, ao pedir mais direitos aos pensionistas e aposentados, via-se na contingência de os negar, em nome da saúde orçamentária.
Manteve fidelidade às suas idéias. Se ela será expulsa, ou não, do partido, não lhe deve importar, mas, importa, sim, a consciência de que não pode fugir de suas próprias idéias.
Desde que Galileu aceitou a abjuração, mesmo se consolando no murmúrio de que, no entanto, a Terra se movia, e que Giordano Bruno preferiu ser levado à fogueira, a escolha entre as idéias e as razões práticas é definida pelo caráter de cada um.

O PMDB não tem conseguido voltar aos tempos de Ulysses, de Severo Gomes, de Tancredo, de Oscar Pedroso Horta. O senador Renan Calheiros bem que se esforça em portar idéias, mas, seja porque elas pesem muito, seja porque o projeto de poder de sua ala não conta com os votos, mas com a adesão, tem procurado transformar o partido no principal suporte da política econômica. Espera-se que as medidas, amargas agora, tenham um efeito purificador, e permitam a tão esperada recuperação do desenvolvimento econômico. Do contrário seria a continuação dos sacrifícios, a fim de enriquecer os banqueiros, nacionais e estrangeiros, mediante as altas taxas de juros do mercado.

Mauro Santayana, jornalista, é colaborador do Jornal da Tarde e do Correio Braziliense. Foi secretário de redação do Última Hora (1959), correspondente do Jornal do Brasil na Tchecoslováquia (1968 a 1970) e na Alemanha (1970 a 1973) e diretor da sucursal da Folha de S. Paulo em Minas Gerais (1978 a 1982). Publicou, entre outros, "Mar Negro" (2002).

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