O Novo Consenso de Washington

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Publicado Terça, 16 de Abril de 2024 às 09:46, por: CdB

A guerra comercial iniciada por Trump contra a China, mantida por Biden, e a recente adoção de políticas industriais pelo governo Biden, destinando centenas de bilhões de dólares para incentivar a indústria norte-americana de semicondutores.


Por Luís Antônio Paulino - de São Paulo


Depois de um breve interregno de pouco mais de meio século, durante o qual flertou com o liberalismo e sua vertente mais radical, o neoliberalismo, representado pela famosa Escola de Chicago, os Estados Unidos voltaram a praticar o que Alexander Hamilton, primeiro-secretário do Tesouro dos Estados Unidos no governo de George Washington, propunha em seu famoso “Relatório das Manufaturas” de 1791.




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Protecionismo renovado: como a mudança de política comercial dos EUA ecoa as práticas históricas e molda a competitividade global atual

Conforme afirma Há-Joon Chang em seu conhecido livro “Chutando a Escada. A Estratégia de Desenvolvimento em Perspectiva História”, Hamilton argumentava que a concorrência estrangeira e a “força do hábito” impediriam as novas indústrias, que em breve poderiam ser competitivas internacionalmente, de se desenvolverem nos Estados Unidos, a menos que a ajuda governamental compensasse os prejuízos iniciais. Essa ajuda, segundo ele, poderia tomar a forma de tarifas de importação ou, em casos mais raros, de proibição de importação.


Toda a história de ascensão do capitalismo norte-americano, desde então, foi marcada por uma política fortemente protecionista, o hoje convenientemente esquecido “Sistema Americano”, advogado por Hamilton e outras importantes figuras como Henry Clay e Abraham Lincoln. Consistia na proteção das indústrias nacionais e no aperfeiçoamento interno (investimentos em infraestrutura) em oposição frontal ao “sistema britânico” de livre comércio.


Em 1828, foi estabelecida a que ficou conhecida por seus detratores do sul como “Tarifa das Abominações”, que estabeleceu uma tarifa de 38% para manufaturas importadas e 45% sobre certas matérias-primas importadas. Essa tarifa foi substituída, em 1832, por uma nova lei tarifária fixando uma tarifa média de 40% para bens manufaturados, aumentado ainda mais as tensões entre o norte e o sul dos Estados, que acabou desembocando na Guerra da Secessão entre 1861 e 1865. Erroneamente se atribuiu à questão da escravidão a causa da guerra civil americana, mas a questão de fundo era a política protecionista pleiteada pelo norte industrialista em oposição ao livre-comércio advogado pelo sul agrário e escravista.



Guerra da Secessão


A vitória do Norte na Guerra da Secessão permitiu que os Estados Unidos continuassem a ser os mais obstinados protecionistas até a Primeira Guerra Mundial. Em 1875, a tarifa média de importação variava de 40% a 50%.  Em 1913 a Tarifa Underwood reduziu a tarifa média dos bens manufaturados de 44% para 25%, mas a eclosão da Primeira Guerra Mundial tornou essa lei ineficaz. Em 1930, com o início da Grande Depressão, institui-se a Lei Smoot-Hawley, cuja alíquota média para os produtos manufaturados era de 48%. Só depois da Segunda Guerra Mundial, quando os Estados Unidos alcançaram sua incontestável supremacia industrial, finalmente liberaram o comércio e passaram a advogar o livre-comércio.


A adesão dos Estados Unidos ao livre-comércio durou enquanto a sua supremacia industrial não foi contestada por nenhum outro concorrente. Com a ascensão da Alemanha, na década de 1970, e do Japão, na década de 1980, os norte-americanos foram paulatinamente abandonando sua adesão ao livre-comércio, seja forçando seus concorrentes a valorizar suas moedas frente ao dólar, como ocorreu no caso do Japão, com o chamado Acordo do Plaza, seja aplicando sanções baseadas na Seção 301 da Lei de Comércio dos EUA de 1974 que autoriza o presidente dos Estados Unidos a tomar todas as medidas apropriadas, incluindo retaliação tarifária e não tarifária, para obter a remoção de qualquer ato, política ou prática de um governo cuja política comercial afete os interesses norte-americanos.


Mas foi com a ascensão da China, ao se tornar a “fabrica do mundo”, que desbancou a indústria norte-americana em diversos setores, nomeadamente no eletroeletrônico, e mais recentemente no automobilístico, com os carros elétricos, que os Estados Unidos abandonaram definitivamente qualquer compromisso com o livre-comércio, primeiro inviabilizando o funcionamento da Organização Mundial do Comércio (OMC) e, mais recentemente, voltando a adotar as práticas protecionistas que vigeram nos Estados Unidos até a Segunda Guerra Mundial.


A guerra comercial iniciada por Trump contra a China, mantida por Biden, e a recente adoção de políticas industriais pelo governo Biden, destinando centenas de bilhões de dólares para incentivar a indústria norte-americana de semicondutores, carros e baterias elétricas e outras indústrias de tecnologia de ponta e para melhorar a infraestrutura do país, marcam o retorno definitivo do Estados Unidos ao chamado “Sistema Americano” proposto por Alexander Hamilton, Henry Clay, Abraham Lincoln, dentre outros. Só se surpreende com o que hoje está ocorrendo nos Estados Unidos quem desconhece a história e acha, ingenuamente, que os Estados Unidos se tornaram a potência hegemônica mundial praticando o livre-comércio e o liberalismo econômico.


Artigo do Wall Street Journal (18/3), afirmou que “Movimentos vigorosos contra duas empresas estrangeiras na semana passada mostraram como Washington abandonou a sua adesão à abertura internacional e defende agora uma visão econômica mais nacionalista e protecionista. Primeiro, a Câmara votou esmagadoramente para proibir ou forçar a venda do TikTok, o aplicativo de vídeo de propriedade chinesa. Em seguida, o presidente Biden divulgou uma declaração se opondo à oferta da Nippon Steel, com sede no Japão, pela United States Steel, que ele disse que deveria permanecer nas mãos dos EUA.”



Os líderes de ambos os partidos


Segundo a mesma matéria, “Até 2016, os líderes de ambos os partidos aceitaram geralmente o chamado Consenso de Washington: abertura ao comércio e investimento estrangeiros e interferência mínima do governo nos mercados. Donald Trump, quando era presidente, rompeu decisivamente com isso ao impor tarifas à China e aos aliados, e Biden deu continuidade a muitas dessas políticas. Num discurso no ano passado, o conselheiro de segurança nacional de Biden, Jake Sullivan, chamou a nova abordagem de “novo consenso de Washington”. Essa visão mundial exige uma combinação de tarifas e subsídios para apoiar importantes indústrias nacionais, como o aço, os semicondutores e os automóveis, e reverter um declínio de décadas na capacidade industrial americana. O comércio global livre ajudou a baixar os preços ao consumidor, mas à custa dos trabalhadores dos EUA e da segurança nacional, prossegue o pensamento.”


Alguns dias depois (22/3), o mesmo Wall Street Journal, porta-voz do sistema financeiro globalizado, voltou a bater na mesma tecla: “Quem decide se o TikTok permanece chinês é banido ou vendido? Washington. Quem determina se uma empresa americana ou japonesa comprará a United States Steel? Washington. Quem está dando à Intel US$ 8,5 bilhões para fabricar semicondutores nos EUA? Você entendeu. Nos EUA, as decisões empresariais antes tomadas em salas de reuniões ou reuniões de acionistas dependem cada vez mais da política. Os EUA não estão a deslizar para o socialismo, no qual o governo controla os meios de produção. Pode, no entanto, estar se inclinando para o capitalismo de Estado, no qual o governo intervém regularmente nos negócios para garantir que estes servem ao interesse nacional.”


Segundo o jornal Nikkei Asia (23/3), “A Intel receberá até US$ 8,5 bilhões em doações e US$ 11 bilhões em empréstimos do governo dos EUA para produzir semicondutores de ponta na maior aplicação de fundos sob o CHIPS and Science Act. O presidente Joe Biden viajou para Chandler, Arizona, local de uma das novas fábricas da Intel, na quarta-feira para anunciar oficialmente a decisão. “Isso vai transformar o país de uma forma que vocês ainda nem entendem”, disse ele. A secretária de Comércio, Gina Raimondo, disse aos repórteres que esta será a “maior doação” para qualquer empresa de chips sob a lei. “Isso permitiria à Intel produzir chips de ponta para indústrias importantes”, disse Raimondo, acrescentando que tais semicondutores são vitais para a inteligência artificial e os sistemas militares.”


 

Luís Antônio Paulino, é Professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), diretor do Instituto Confúcio na Unesp, pesquisador do Instituto de Estudos de América Latina da Universidade de Hubei, China e colaborador do portal Bonifácio.


As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil




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