A falta que o respeito faz

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Publicado Segunda, 29 de Agosto de 2011 às 07:37, por: CdB

A cultura moderna, desde os seus albores no século XVI, estáassentada sobre uma brutal falta de respeito. Primeiro, para com a natureza,tratada como um torturador trata a sua vítima com o propósito de arrancar-lhetodos os segredos(Bacon). Depois, para com as populações originárias da AméricaLatina. Em sua "Brevíssima Relação da Destruição das Indias” (1562) contaBartolomé de las Casas, como testemunho ocular, que os espanhóis "em apenas 48anos ocuparam uma extensão maior que o comprimento e a largura de toda aEuropa, e uma parte da Ásia, roubando e usurpando tudo com crueldade, injustiçae tirania, havendo sido mortas e destruídas vinte milhões de almas de um paísque tínhamos visto cheio de gente e de gente tão humana”(Décima Réplica). Emseguida, escravizou milhões de africanos trazidos para as Américas e negociadoscomo "peças” no mercado e consumidos como carvão na produção.

Seria longa a ladainha dos desrespeitos de nossa cultura,culminando nos campos de extermínio nazista de milhões de judeus, de ciganos ede outros considerados inferiores.

Sabemos que uma sociedade só se constrói e dá um salto pararelações minimamente humanas quando instaura o respeito de uns para com osoutros. O respeito, como o mostrou bem Winnicott, nasce no seio da família,especialmente da figura do pai, responsável pela passagem do mundo do eu para omundo dos outros que emergem como o primeiro limite a ser respeitado. Um doscritérios de uma cultura é o grau de respeito e de autolimitação que seusmembros se impõem e observam. Surge, então, a justa medida, sinônimo dejustiça. Rompidos os limites, vigora o desrespeito e a imposição sobre osdemais. Respeito supõe reconhecer o outro como outro e seu valor intrínsecoseja pessoas ou qualquer outro ser.

Dentre as muitas crises atuais, a falta generalizada derespeito é seguramente uma das mais graves. O desrespeito campeia em todas asinstâncias da vida individual, familiar, social e internacional. Por estarazão, o pensador búlgaro-francês Tzvetan Todorov, em seu recente livro "O medodos bárbaros” (Vozes 2010), adverte que se não superarmos o medo e oressentimento e não assumirmos a responsabilidade coletiva e o respeitouniversal não teremos como proteger nosso frágil planeta e a vida na Terra jáameaçada.

O tema do respeito nos remete a Albert Schweitzer(1875-1965), prêmio Nobel da Paz de 1952. Da Alsácia, era um dos mais eminentesteólogos de seu tempo. Seu livro "A história da pesquisa sobre a vida de Jesus”é um clássico por mostrar que não se pode escrever cientificamente umabiografia de Jesus. Os evangelhos contêm história; mas não são livroshistóricos. São teologias que usam fatos históricos e narrativas com o objetivode mostrar a significação de Jesus para a salvação do mundo. Por isso, sabemospouco do real Jesus de Nazaré. Schweitzer compreendeu: histórico mesmo é oSermão da Montanha e importa vivê-lo. Abandonou a cátedra de teologia, deixoude dar concertos de Bach (era um de seus melhores intérpretes) e se inscreveuna faculdade de medicina. Formado, foi a Lambarene no Gabão, na África, parafundar um hospital e servir a hansenianos. E ai trabalhou, dentro das maioreslimitações, por todo o resto de sua vida.

Confessa explicitamente: "o que precisamos não é enviar paralá missionários que queiram converter os africanos mas pessoas que se disponhama fazer para os pobres o que deve ser feito, caso o Sermão da Montanha e aspalavras de Jesus possuam algum sentido. O que importa mesmo é, tornar-se umsimples ser humano que, no espírito de Jesus, faz alguma coisa, por pequena queseja”.

No meio de seus afazeres de médico, encontrou tempo paraescrever. Seu principal livro é: "Respeito diante da vida”, que ele colocoucomo o eixo articulador de toda ética. "O bem”, diz ele, "consiste emrespeitar, conservar e elevar a vida até o seu máximo valor; o mal, emdesrespeitar, destruir e impedir a vida de se desenvolver”. E conclui: "quandoo ser humano aprender a respeitar até o menor ser da criação, seja animal ouvegetal, ninguém precisará ensiná-lo a amar seu semelhante; a grande tragédiada vida é o que morre dentro do homem enquanto ele vive”.

Como é urgente ouvir e viver esta mensagem nos dias sombriosque a humanidade está atravessando.

[Leonardo Boff é autor de "Convivência, Respeito,Tolerância”, Vozes 2006].

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