Não há happy-end em Locarno

Arquivado em:
Publicado Terça, 16 de Agosto de 2016 às 15:34, por: CdB
Por Rui Martins, do Festival Internacional de Cinema de Locarno:
KEN-LOACH.jpg
Com 80 anos, Ken Loach continua na luta
O premio Leopardo de Ouro para o filme  búlgaro Godless foi a maior prova de que entretenimento não é o forte em Locarno. Mesmo quem começava a considerar os filmes da Piazza Grande como concessão comercial e desejo de agradar o grande púablico, precisou se corrigir com a entrega do Premio do Público da Piazza Grande para Eu, Daniel Blake, de Ken Loach. Os votos dos espectadores mostraram que preferiam filmes sérios e mesmo políticos às histórias adocicadas com happy end. Eu, Daniel Blake é filme de se sair chorando, no qual se mostra como os idosos, deficientes ou com pouca formação são massacrados pelo aparelho dos seguros e pensões sociais. A burocracia digitalizada é uma maneira da Inglaterra ir se desfazendo dessa pesada carga social, enviando esses infelizes mais cedo para o cemitério. Um legado, diga-se de passagem, como lembrou Ken Loach, de Margareth Tatcher, mas que Tony Blair, o trabalhista poodle dos EUA, não soube corrigir. Na Inglaterra, pós-Cameron de hoje, a ordem é desestatizar tudo, diminuir os impostos para as grande empresas, e assim deixar os jovens com empregos temporários e os trabalhadores sem apoio social. Godless, de Ralitza Petrova, é um desfilar de closes escuros de uma enfermeira búlgara sem valores éticos por ter uma vida miserável e, por isso, disposta a trair seus clientes velhos e alguns já decrépitos, para ganhar algum dinheiro da máfia interessada em roubar identidades. O filme é escuro, em contraste com o sol brilhando fora das salas de cinema, porque não oferece uma saída entre velhos senis, enfermeira fria, traficantes de identidades, policiais e juízes corruptos. Esse clima de desesperança já se insinuava no primeiro filme em pré-visão para a crítica, Un Judeu como exemplo, transposição para o cinema de uma novela de Jacques Chessex, um dos grandes escritores suíços. Em 1942, na cidade suíça de Payerne, conspirava um grupo antissemita de simpatizantes de Hitler desejoso de passar à ação, matar um judeu, por exemplo. O comerciante Arthur Bloch é o escolhido, num caso de tortura e assassinato que a cidade abafa e procura esquecer. Mas o escritor Jacques Chessex desenterra esse fato real, em 2009, num livro denúncia, o suficiente para ser alvo de ameaças e de ofensas. Atacado oralmente por alguém do público, quando defendia outro judeu, Roman Polanski, Jacques Chessex sofreu um enfarte e morreu sem poder ser reanimado. O filme Corações Cicatrizados, de Radu Jude, baseado na autobiografia do escritor rumeno Max Blecher, tem seus atores deitados, pois estão num hospital especializado em tuberculose óssea, principalmente nas vértebras, numa época, 1930, de tratamento difícil. Os doentes eram engessados, exceto as pernas e os braços, ficavam internados meses para tratamento, mas mesmo assim, deitados e engessados, em salas comuns ou ao sol, à beira do Mar Negro, conversavam, discutiam literatura ou filosofia, e chegavam mesmo a se amar em posições grotescas. O nazismo avançava na Alemanha, a Bulgária ficaria do lado nazista durante a Segunda Guerra Mundial e os judeus são um tema constante entre os enfermos no hospital. A guerra com seus horrores e seus mortos, aleijados, estropiados, órfãos, viúvas e seus desequilibrados mentais é o tema de muitos filmes exibidos em Locarno, assim como o desespero de mães ao verem suas filhas, enganadas nas redes sociais, quererem ir se casar ou lutar com os extremistas de Daesch, o chamado Estado Islamita. O Festival Internacional de Cinema de Locarno consegue continuar sendo o festival de filmes independentes de países emergentes, de temas de atualidade, de debates e de denúncias. Rui Martins, de volta do Festival Internacional de Cinema de Locarno.
Tags:
Edição digital

 

Utilizamos cookies e outras tecnologias. Ao continuar navegando você concorda com nossa política de privacidade.

Concordo