Perdão

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Publicado Terça, 27 de Março de 2012 às 08:11, por: CdB

A palavra "perdão” por si mesma carrega em si toda umaconcepção antropológica. Ensina que ser humano é mover-se em uma economia nãoda troca, não do comércio, mas do dom.

Somos feitos para o dom e não para as relações interessadase comerciais onde a sociedade de consumo nos põe. O perdão significa, então, aênfase nisso que é constitutivo de nossa identidade. Per-dão= persistir no dom,insistir em dar. Mesmo após a ofensa, a ruptura não se dá. Porque uma daspartes insiste, persiste, per-doa.

A revelação, a fé e a teologia nos dizem que, se somosassim, não existimos sozinhos. Somos responsáveis uns pelos outros, estamosconectados uns com outros e depende de nós todos que a humanidade continue aautocompreender-se como feita para o dom e não para a acumulação irresponsávelde bens excluindo outros dos mesmos.

E somos assim porque Deus é assim. Se somos criados à suaimagem e semelhança, não podemos ser de outra maneira. E se Deus per-doa,persiste no dom seja o que for que façamos, nós não podemos ser fiéis à nossavocação de criaturas suas a não ser perdoando, insistindo e persistindo no domde nós mesmos aos outros.

Reconhecermo-nos necessitados de perdão equivale então areconhecer que somos chamados a perdoar os outros. A persistir no dom a fim deque eles possam encontrar a vida em plenitude para a qual foram criados.

Já no Judaísmo há uma consciência forte por parte do povoeleito de que é preciso perdoar os semelhantes para receber o perdão de Deus. Operdão é vivido e celebrado com jejum e oração em uma das festas maisimportantes do Judaísmo, o Yom Kippur.

No Cristianismo, o perdão sem limites encontra-se no coraçãodo ensinamento de Jesus de Nazaré a seus discípulos. O Sermão da Montanha,Carta Magna do Reino de Deus, proposto por Jesus como projeto maior daquele quedeseja segui-lo, traz vários convites ao perdão irrestrito a todos, mesmo aosinimigos.

Ao afirmar que não é permitido insultar seu irmão, pois issoé uma forma de agressão à sua vida e entra no mandamento que diz "Não matarás”,é toda a dinâmica do perdão que começa a desenvolver-se. A ira é condenada,pois o amor respeitoso do irmão, segundo o Evangelho, exige mais do que umasimples observância da Lei. O autor neotestamentário visa aqui não tanto a umacólera interior como aquela que se expressa externamente em injúrias. Não sepode, portanto, dissociar o sentimento da cólera de certas demonstraçõesviolentas, notadamente de palavras ofensivas ao próximo.

O perdão e a reconciliação não são uma imagem, mas um deverque se impõe ao cristão mesmo antes de fazer sua oferenda no templo. Precede atodo e qualquer gesto e atitude ritual e de louvor a Deus. Assim também alguémque é agredido (esbofeteado em uma face) não deve devolver a agressão, masoferecer a outra face. Perdoar e mostrar seu perdão com essa atitude. Amarsempre e apesar de tudo, mesmo aos inimigos e aos perseguidores.

O cristão, portanto, nesta arte de "persistir no dom” deveir além da justiça dos escribas e fariseus; deve fazer "a mais” que ascategorias pecadoras mencionadas em comparação pelo evangelista. Deus empessoa, por seu exemplo soberano, o chama a um ultrapassar-se constante e semlimite. Deus que faz nascer seu sol e cair sua chuva sobre maus e bons, justose injustos. "Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito”.

Jesus, o Filho de Deus, arrasta seus discípulos a limitesnão suspeitados. Pois não propõe apenas uma arte de viver neste mundo, mas umaobrigação positiva, um ministério do amor universal. Neste sentido, vai muitoalém do próprio dever do perdão: apesar de incluí-lo, a exigência de Jesus denão insultar o outro, não devolver a agressão e amar os inimigos vai maislonge. Rejeitando o que ainda possa subsistir de condescendência mesmo noperdão, leva a esquecer-se de si para não mais pensar senão no dom generoso desi, sem nenhum ressentimento e intenção escondida.

Trata-se simplesmente de amar, sem jogadas estratégicas demanutenção da paz nas fronteiras da Igreja nem de propaganda para conversão. É,portanto, e sem dúvidas, um amor mais divino que humano. Mas não deveatemorizar nem desencorajar ninguém, pois para isso somos criados, paraassemelhar-nos sempre mais a Jesus Cristo, Filho de Deus e Deus mesmo.

Que nesta Quaresma possamos exercitar o perdão sem medidaque nos faz semelhantes a Jesus, a fim de poder celebrar com júbilo o triunfodo amor que é Sua Páscoa!

[Maria Clara Bingemer é autora de "Deus amor: graça quehabita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros.
Copyright 2012 – Maria Clara Lucchetti Bingemer - É proibida a reprodução desteartigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, semautorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)].

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