Neuroses renovadas

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Publicado Terça, 07 de Janeiro de 2003 às 17:13, por: CdB

O que nos reserva 2003? Esta coluna consultou astrólogos e financistas, alquimistas e estatísticos. Decepção! Nada de novo foi revelado, nada além de variações quantitativas: uma guerra, duas tragédias e três escândalos; ou duas guerras, três tragédias e dois escândalos. Tampouco os espíritos econômicos foram claros. Evocados no clímax da temporada da caça ao planejamento estratégico, incorporaram a contragosto e psicografaram o óbvio: um ano difícil! Então, caro leitor, a saída foi recorrer ao holandês Kets de Vries (o pai do tema) e tentar um exercício sobre a verdadeira base ortopédico-estrutural das organizações contemporâneas: loucuras e neuroses. Como se sabe, de perto, independente das pirotecnias dos relações-públicas e das artimanhas dos comunicólogos, nenhuma empresa é normal. Eis então que surge uma visão consistente do futuro. Observado o passado, examinadas as tendências e traçados os cenários, revela-se um 2003 com mudanças importantes nas neuroses organizacionais: a depressão dará lugar à compulsão e a paranóia será substituída pelo dramatismo. Em suma: o movimento na ala psiquiátrica continuará o mesmo, porém revigorado em aflições e delírios. O final de 2002 já assinalava as condições de contorno: depois dos devaneios neon-liberais, surgiu um revival do nacionalismo provinciano, embalado por um otimismo prozacquiano e por um autismo de periferia. Em Terra Brasilis, por mais que uns e outros voem e vejam, a realidade é mantida à margem, constantemente negada pelo medo do novo ou por simples preguiça. É este fecundo ambiente sociocultural que nutre nossas neuroses organizacionais. Se não há evolução, decerto há mudança. O discurso segue trôpego, e tudo muda para que fique como está. O ano de 2002 foi um ano de depressões corporativas, com as crises mais graves localizadas na montanha-russa do segundo semestre. Foi um período de sentimentos de culpa e inadequação, de falta de perspectivas e de minguada motivação. Muitos empresários e executivos pareciam desnorteados, à mercê dos eventos, sem capacidade para pensar claramente e inaptos para definir um rumo. Tudo, claro, por causa das eleições, porque aqui a culpa é sempre do outro. Mas 2003 será diferente e a depressão cederá lugar à compulsão. De neurose renovada, os ex-depressivos adquirirão confiança e focarão, com fibra de sovina, detalhes irrelevantes: cortarão despesas com xerox e cancelarão contratos de estagiários. Velhos dogmas de gestão retornarão travestidos de novidade e a preocupação com detalhes triviais ganhará status estratégico. A fixação pelo próprio umbigo corporativo reinará e um novo boom das normas ISO será celebrado. Entretanto, 2002 não foi apenas o ano das organizações depressivas, foi também o ano das empresas paranóicas, aquelas que desconfiam de tudo e todos. Orgulhosos, seus executivos atiram "filosofia" reciclada no ventilador, como aquele conhecido playboy de Karmann Ghia e bota de vaqueiro. Em 2002, as empresas paranóicas cultivaram sem pudor a hipercompetitividade. Mas até os paranóicos convictos mudam: em 2003, suas empresas evoluirão na escala das neuroses e se tornarão organizações dramáticas. A atenção exagerada ao próprio umbigo permanecerá: uma vez narciso, sempre narciso. Porém, no lugar da frieza emergirão emoções de dramalhão mexicano e a obsessão por resultados será ultrapassada pela obsessão pela aparência de resultados. Com sorte, Pindorama terá em breve a sua Enron. Depressiva ou paranóica, compulsiva ou dramática, a vida organizacional continuará a fazer vítimas, e quase todas voluntárias. Por que a complacência com a loucura? É a cognição, caro leitor, a cognição. Veja o mais fiel retrato do País: pendurado na encosta invadida e sustentado por oportunismo de vereador, repousa em equilíbrio instável o insalubre tugúrio. No teto, o patético prato branco mira o céu: um cordão umbilical que liga o nada a lugar nenhum, em geral uma Zona Sul de silicone. O habitante de Pindorama vive num

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