Gilberto Gil: O governo Lula não foi populista e sim popular

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Publicado Segunda, 25 de Junho de 2012 às 06:23, por: CdB

Gilberto Gil recebeu a reportagem da Folha de São Paulo em seu camarim, na última quinta-feira (21), antes de se apresentar, ao lado de Andy Summers (ex-guitarrista do The Police), Fernanda Takai (Pato Fu) e Jorge Mautner, em evento fechado da Rio+20. Em mais de uma hora de conversa, falou de suas convicções políticas, criticando os tucanos e cutucando a atual ministra da Cultura, Ana de Hollanda. Pirataria, cultura digital, MPB, drogas e religião também entraram no cardápio da conversa.

Gil se prepara para uma turnê de seu novo show, "Concerto de Cordas & Máquinas de Ritmo"

No momento, o artista baiano se prepara para uma turnê europeia de seu novo show, "Concerto de Cordas & Máquinas de Ritmo", com arranjos do violoncelista Jacques Morelenbaum.

Uma das primeiras apresentações, ocorrida em maio no Theatro Municipal do Rio, contou com participação da Orquestra Petrobras Sinfônica e foi transformada em DVD, a ser lançado em novembro. Mas poderá ser vista amanhã, às 19h, no canal de Gil no YouTube (youtube.com/gilbertogil), em homenagem a seu aniversário.

Leia a seguir trechos da entrevista.

Folha: Como se sente aos 70 anos?
Gilberto Gil - Bem, nessa idade ninguém vai mudar radicalmente o modo de ver as coisas, que é uma decantação de tudo que foi vivido. Cada vez me desvencilho mais de minha própria história. Ela passa a valer e ter sentido mais para a sociedade e menos para mim mesmo.

Folha: É religioso?
Gilberto Gil: Sim, nesse sentido de que Deus não é um, Deus é todos. Não professo nenhuma confissão religiosa, mas rezo todos os dias. Acredito no poder da oração. Mas as instituições religiosas, e incluo todas as ordens, estão preocupadas com política e poder. Já os evangélicos cresceram enormemente como utilitarismo sistêmico produtivista, industrialista. Hoje já é uma religião para lá da religião.

Folha: Politicamente, como você se posiciona?
Gilberto Gil: Já votei no PMDB, no PT. Votei duas vezes em FHC e depois em Lula, duas vezes.
O justo meio está na igual possibilidade dos extremos. Ou seja: o centro flutua, não é uma coisa fixa, estática.

Folha: Como compara Dilma a Lula?
Gilberto Gil: Primeiro, ela é mulher, o que muda muito o modo de olhar para várias questões. Os homens, por serem a classe dominante historicamente com relação às mulheres, são autocomplacentes, se permitem coisas. Eu acho que as mulheres são mais cuidadosas nesse sentido.

Folha: Que achou da foto do Maluf com Lula?
Gilberto Gil: Isso me lembrou a foto dele [Maluf] com FHC, já faz tanto tempo [risos]. E é pior para o Lula, porque ele sempre foi mais identificado com a pureza do que FHC. O PT sempre foi um partido idealmente mais angelical que o PSDB. O PSDB era: "Algumas meninas já tinham alguns anos de janela". No PT, não: "As meninas estão na janela agora".

Folha: Já usou muita droga?
Gilberto Gil: Maconha sim, até os 50 anos de idade, quando decidi que devia me afastar do hábito. Outras drogas, como LSD e mescalina também, na década de 1970. Gostava da maconha principalmente por causa da música. Certas sinapses desencadeavam uma liberdade auditiva. Corpo e alma percebiam essa inteligência. Costumo até brincar que tanto a bossa nova como o reggae, que têm doçura e suavidade, são gêneros que foram beneficiados pela maconha [risos].

Folha: Como está sua voz?
Gilberto Gil: Melhorou. Em duas ocasiões, com diferença de dez anos, na mesma corda vocal, tive pólipos -conhecidos popularmente como calos. Nos dois casos, fiz cirurgia. De lá para cá, intensifiquei os cuidados. Estéticos inclusive. Parei de cantar com tonalidades altas e cheguei a um patamar mais compatível com a idade das cordas vocais.

Folha: Há quem diga que a MPB que se faz hoje é muito pior que antigamente.
Gilberto Gil: Mudou muito. Chico [Buarque] chega a dizer que teme pelo desaparecimento da canção. Porque percebe que a canção -da forma como existiu no nosso tempo, como forma de expressão quase sagrada, com aquela aura de oração religiosa, para a qual nos empenhávamos com todo entusiasmo- está deixando de existir. A canção passou a se submeter a processos de formatação de manufatura muito específicos e, de certa forma, padronizados. De todo modo, esses processos estão sujeitos a súbitas explosões de luminosidade.

Folha: Como enxerga a pirataria?
Gilberto Gil: Foi um conceito sólido enquanto se relacionava ao mundo analógico, da escassez, da distinção entre o original e a cópia. No momento em que a cultura digital borra essas fronteiras, borra também o que é e não é pirataria. Com as lupas bem ajustadas você vai encontrar pirataria aqui e acolá, mas, no olhar aberto horizontal sobre os territórios de atividade da humanidade hoje em dia, acabou [risos].

Folha: E sua obra?
Gilberto Gil: No meu site você tem acesso a todos os meus discos, mas não pode baixá-los. Já quis abrir geral minha obra fonográfica, para remixes e reutilizações de outros autores com fins artísticos. Não pude porque minha gravadora não permitiu e ela detém 90% de meus fonogramas. Se eu tivesse autonomia, abriria para o mundo artístico. E para uso comercial, dependendo da finalidade, que é o que já faço com meus "copyrights". Esses eu detenho e faço uma gestão com essa proposta.

Folha: Juca Ferreira, seu sucessor, disse que houve descontinuidade na gestão da Cultura, com Ana de Hollanda.
Gilberto Gil: Depende da área. O licenciamento por "creative commons" que implementamos foi revisto. Ao mesmo tempo que deixaram de usar as licenças "creative", não criaram uma licença pública própria, como Austrália e Inglaterra fizeram. OK, você não ter o "creative" por se tratar de uma "marca" americana; mas então que se crie alguma licença pública para atender a esse tipo de interesse.

Folha: Os pontos de cultura, que eram uma de suas principais bandeiras, desidrataram.
Gilberto Gil: É o que ouço em geral por aí. De alguma maneira houve um certo desânimo gerencial, administrativo, institucional, por parte do ministério. Mas tomo o cuidado de não monitorar a gestão atual: ela precisa ter autonomia para ser diferente também.

Folha: Que balanço você faz de sua gestão?
Gilberto Gil: No Brasil predominava uma visão muito eurocentrista e "civilizada" sobre a produção cultural. As manifestações propriamente populares eram vistas como uma coisa chula da periferia, e o combate que o funk carioca sofre é um exemplo disso. Em minha gestão procuramos dar atenção ao protagonismo popular e à autogestão. Esse viés era uma coisa do governo Lula e que os críticos gostam de dizer que era populista. Já eu prefiro responder que esse governo era popular.

Publicado no jornal Folha de São Paulo

 

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