Esses moços, pobres moços

Arquivado em:
Publicado Sexta, 30 de Novembro de 2012 às 14:22, por: CdB

Trecho do livro Claros Sussurros de Celestes Ventos, de Joel Rufino, que acaba de ser lançado pela editora Bertrand Brasil

Por Joel Rufino


   

São Paulo, por volta de 1930

No final dos expedientes, enquanto os bondes se enchiam de comerciárias, o grupo se reunia no Bar do Bigode. Às sextas-feiras, passo mais ou menos firme, saíam para apreciar, formando rodinha, o footing de patrícios na avenida. O mais assíduo, o parnasiano Benedito Lélio, tinha a excentricidade de recitar Cruz e Sousa em cima de mesa de bar, restaurante, festa de quinze anos, Ninguém o teu espasmo obscuro, pó ser humilde entre os humildes seres. Sua pacatez se via no rosto magro, azeitonado, calva de notário, bigodinho. Seu pai, Isaías, antigo tabelião de Oblivium, lhe arranjara colocação de escriturário da secretaria de fomento agrícola. Vivia com a mulher e um filho, Marcílio Dias, numa casinha de vila. Em sua biblioteca se encontravam Fagundes Varela e Ariosto, embora sem sempre Benedito Lélio pudesse pagar as contas do armazém. A família exigia que parasse de comprar livros, o poeta entristecia, a pele mais se azeitonava, só achava consolo, relativo consolo, no Bigode. Depois do sexto ou sétimo rabo-de-galo, os colegas exigiam, recita, poeta, recita, subia na mesa, O coração de todo o ser humano foi concebido para ter piedade para olhar e sentir com caridade. Não era, contudo, religioso. O que os amigos mais admiravam nele era o sentimento de honra. Certo domingo, um freguês pôs fogo no armazém de cinco portas em que Benedito tinha conta, queimando os cadernos de crédito, ele procurou o dono, pagou a dívida.

Benedito esteve na casa do Escritor Paulista, tomou licor em bandeja de prata, não segurou a vontade de perguntar, quais os elementos principais do modernismo. O éter e a cocaína, respondeu o outro. Lhe fora pedir opinião sobre capítulo inicial de uma biografia do Cisne Negro em que trabalhava havia dez anos. Começava pela morte do poeta, sua ânsia de ar e luz no sanatório de Sítio, o embarque do corpo para o Rio num vagão de cavalos, pulava em seguida para uma paisagem selvagem de Desterro, ouvindo piano em casa de uma mulher loura. O andamento é de fita, comentou o Escritor às primeiras linhas, quanto ao conteúdo só um negro como você pode compreender a negritude desse adorador de brancura. Você também compreenderia, provocou Lélio.

Livro

Joel Rufino dos Santos. Claros sussurros de celestes ventos. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2012

 

..

Tags:
Edição digital

 

Utilizamos cookies e outras tecnologias. Ao continuar navegando você concorda com nossa política de privacidade.

Concordo