Dormimos sobre um vulcão

Arquivado em:
Publicado Quarta, 16 de Novembro de 2005 às 18:19, por: CdB

"Nós dormimos sobre um vulcão. Os senhores não percebem que a terra treme mais uma vez? Sopra o vento das revoluções, a tempestade está no horizonte."
(Alexis de Tocqueville, em 1848, na França.)

A rebelião incendiária na Europa, hoje, lembra o início da onda revolucionária de 1848, pressagiada pelo deputado Tocqueville, na Câmara francesa, no início daquele ano. Em poucas semanas, nenhum governo ficou em pé numa área da Europa que hoje é ocupada completa ou parcialmente por dez Estados nacionais. Eric Hobsbawm nota que "1848 foi a primeira revolução potencialmente global, cuja influência direta pode ser detectada na insurreição de 1848 em Pernambuco (Brasil) e poucos anos depois na remota Colômbia". A extensiva revolução de 1848 foi um marco de afirmação da burguesia liberal frente a dois inimigos distintos: as recalcitrantes forças monarquistas, de um lado; e as ascendentes e difusas forças populares e operárias, de outro.

Um mundo da vida se iniciava há 157 anos. Esse mundo hoje é terminal, arde na chama dos automóveis e na exaltação febril de multidões ofendidas.

Em 1862, Dostoiévski visitando Londres, então centro fervilhante do capitalismo industrial que se consolidava no mundo, e achando tudo muito caótico, improvisado e trepidante concluiu que "aquela aparente desordem é, na verdade, o mais alto grau da ordem burguesa".,p> Ninguém desconhece que o capitalismo traz à história uma racionalidade inseparável do seu modo de produzir e reproduzir a vida social. Essa razão do capital não é somente uma razão da base econômica. É uma razão que não se basta; não se reduz à esfera econômica da produção de mercadorias. É uma razão que, para além de explorar, também domina. Explora economicamente e domina politicamente. Para explorar e dominar necessita de instrumentos ideológicos e institucionais que auxiliem na reprodução sistemática da normalidade constituída.

No século 18 e 19, com o advento da burguesia ao poder de Estado, funda-se a razão democrática que passa a expressar-se nas instituições liberais que hoje experimentamos/sofremos. A burguesia, então como classe revolucionária que procurava o poder pela decomposição da sociedade feudal, divinizada e aristocrática, precisa da razão democrática como ideário abstrato de combate ao poder absolutista. O Estado democrático-burguês é depositário desse ideal abstrato que a classe ascendente utiliza para o êxito de sua estratégia de poder, onde a consigna da cidadania enfeixa práticas públicas fundadas na lei e no direito como expressão da vontade coletiva. Essas práticas são práticas políticas expressas livremente por todos os cidadãos através de instituições que representam o ideal democrático. A forma da democracia burguesa inaugurada no século 18 é, pois, uma forma representada de democracia. Não é a democracia, mas a sua representação dissimulada; a aparência manifesta do abstrato ideal jacobino de 1789.

A forma liberal de democracia é, então, a forma impossível da democracia, uma não-democracia. Mutilada pela parcialidade, impossibilitada da totalidade e da universalidade social e política, a democracia revela-se como ideologia; a fim de reproduzir-se, pelo menos, como expressão simulada da retórica revolucionária original. Maquiavel, no século 15, bem antes dos jacobinos, já havia preparado elementos para a justificação burguesa, separando a moral da política. A razão política pertence à esfera pública do Estado; a moral pertence à esfera privada do indivíduo.

A questão da violência pode ilustrar o assunto. A violência transforma-se em "monopólio da força legítima" do Estado (Max Weber), que a instrumentaliza como razão política. Sai da esfera privada, da luta horizontal de todos contra todos, do estado de natureza, para politizar-se em razão verticalizada de Estado. Hoje, uma das tantas evidências da crise do Estado liberal é a nova expressão horizontalizada da violência que volta a ser manifestada,

Tags:
Edição digital

 

Utilizamos cookies e outras tecnologias. Ao continuar navegando você concorda com nossa política de privacidade.

Concordo