DNOCS X convivência com o Semiárido

Arquivado em:
Publicado Sexta, 10 de Fevereiro de 2012 às 12:21, por: CdB

Operar no Semiárido sem conhecer sua história é voltar a cometer os erros crassos do passado

10/02/2012

 

Roberto Malvezzi (Gogó)

 

O Departamento Nacional de Obras contra a Seca (DNOCS) foi criado em 1909, ainda como Inspetoria de Obras Contra a Seca (IOCS), depois como Inspetoria Federal de Obras Contra a Seca (IFOCS). Durante décadas foi considerado como a maior empreiteira da América Latina.

A concepção do Departamento era equivocada em si mesma, isto é, combater a seca. Claro, nenhum país do mundo criou algum departamento para combater a neve, ou combater a chuva, ou combater o deserto. Entretanto, em sua longa existência, o Departamento construiu a maior açudagem do mundo, cerca de 70 mil, com capacidade para armazenar 36 bilhões de metros cúbicos de água de chuva. O Prof. João Abner, hidrólogo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, costuma dizer que, antes desses açudes, o semiárido era mesmo um deserto. Afinal, o que sempre faltou não foi chuva, mas a capacidade de armazenar a água que a chuva oferece.

Acontece que o Departamento criou ilhas de água, mas nunca fez sua distribuição horizontal. Essa lacuna fundamental é hoje admitida até por quem já esteja na chefia do órgão por quase uma década, como Manoel Bonfim Ribeiro. Essa é a proposta fundamental do Atlas do Nordeste, diagnóstico feito pela Agência Nacional de Águas para o meio urbano da região.

Mas, foi ali também que a chamada “indústria da seca” grassou como praga. Sempre exigindo novas verbas para novas obras, foi o ralo do enriquecimento pessoal de multidões de coronéis nordestinos, que fizeram a maior parte dos açudes e poços em suas propriedades particulares, além de construírem seu poder econômico e político manipulando a sede do povo. O que aconteceu esses dias com o apadrinhado do deputado Henrique Alves é apenas uma amostra grátis de décadas de drenagem do dinheiro público para cofres particulares.

Em 1959, intelectuais como Celso Furtado, setores da Igreja como dom Hélder Câmara, propuseram a criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). Em seu discurso inaugural, Celso Furtado pronuncia a expressão “convivência com o semiárido” - retirando do centro o enfoque no combate à seca e focando a industrialização - que já tinha lastro em outros intelectuais da academia nordestina. Mas, na lógica do capital e do patrimonialismo, a Sudene repetiu a indústria da seca do DNOCS. Com a criação da Sudene, o Departamento perdeu poder.

Esses dias a presidenta Dilma Roussef disse que não iria mais fazer a parceria com a Articulação no Semiárido Brasileiro, que tirou do papel a lógica da convivência com o Semiárido e a fez realidade. Com um fiapo de dinheiro e tecnologias simples, tem um impacto social maior na população mais pobre que cem anos de DNOCS. Agora o governo voltou atrás e disse que vai prosseguir na parceria, mas vai continuar com sua distribuição de 300 mil cisternas de plástico pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), pelas mãos do ministro Fernando Bezerra Coelho. Portanto, uma no cravo e outra no calo do povo.

Operar no Semiárido sem conhecer sua história é voltar a cometer os erros crassos do passado. Um pouco de humildade do governo evitaria tamanho descalabro, como as cisternas de plástico e a nova cara dessa nefasta indústria da seca, agora como hidronegócio materializado na Transposição.

Dilma tem feito um esforço arretado para ressuscitar a indústria da seca.

 

Roberto Malvezzi (Gogó), é músico e escritor de Juazeiro (BA), coordenador nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Tags:
Edição digital

 

Utilizamos cookies e outras tecnologias. Ao continuar navegando você concorda com nossa política de privacidade.

Concordo