A culpa não é só da mudança climática

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Publicado Terça, 15 de Novembro de 2011 às 06:26, por: CdB

"Não é possível estabelecer uma relação direta entre o fenômeno natural das chuvas e os danos de uma enchente. O efeito da mudança climática não deve ser visto isoladamente", afirma o especialista suíço, Bruno Schädler.

E a professora de Engenharia Ambiental da Universidade de Blumenau, Beate Frank, vai mais longe: ela denuncia uma "tentativa deliberada de 'naturalizar' a catástrofe", para livrar os governos de suas responsabilidades.

Uma frase atribuída ao presidente brasileiro ganhou destaque na imprensa internacional no final de novembro: "Lula diz que mudanças climáticas são a causa das enchentes em Santa Catarina".

O vice-secretário federal de Meio Ambiente da Suíça (Bafu, na sigla em alemão), Andreas Götz, ri quando ouve tais declarações. "Não é bem assim. Enchentes sempre existiram, também antes da mudança climática. Elas são, em primeira linha, resultado da ação do ser humano, que ocupa os espaços sem respeitar a natureza", diz a swissinfo.

Um levantamento das enchentes ocorridas nos últimos 500 anos na Suíça prova que elas não são novidade. Os dados mostram que a freqüência de cheias sofre flutuações regulares. Assim, por exemplo, ela foi alta nos períodos de 1550 a 1580 e 1827 a 1875 e baixa nos períodos de 1641 a 1706 e 1925 a 1975 (veja infográfico na coluna da direita).

Depois de 60 anos relativamente calmos, elas voltaram a ser mais freqüentes nas últimas três décadas. "Quando se fala de prejuízos causados pelas enchentes, não deve considerar a influência da mudança climática isoladamente", diz Bruno Schädler, conselheiro científico do Departamento de Hidrologia da Bafu.

Segundo ele, o potencial de risco aumentou proporcionalmente ao crescimento populacional, à elevação do nível de vida, ao desenvolvimento econômico e à evolução das respectivas obras de infra-estrutura em regiões críticas.

Ele explica também que, no caminho entre a queda da chuva e os danos de uma enchente atuam muitos fatores dinâmicos, de modo que não se pode atribuir o prejuízo diretamente ao fenômeno natural. "A mudança climática influencia riscos hidrológicos, ou seja, o imput meteorológico e a situação da região atingida pelas chuvas."

Deslizamento e avalanche de lama em Brienz, estado de Berna (23/8/05). (Keystone)

Quando a prevenção vira risco

Segundo Schädler, intervenções nessa área, por exemplo, através da construção de bacias de retenção ou do desassoreamento dos rios podem diminuir os riscos de cheias. Por outro, também aumentá-los, no caso de construção de pontes.

"Espera-se que as clássicas obras de contenção ofereçam proteção total contra cheias, mas isso é impossível. Confiando no efeito protetor dessas medidas, desenvolveu-se durante décadas uma infra-estrutura econômica em regiões potencialmente de risco, o que aumentou os potenciais de danos", constata.

Essa constatação vale também para a região mais atingida pelas enchentes em Santa Catarina. Segundo a professora de Engenharia Ambiental da Universidade de Blumenau (Furb), Beate Frank, depois das enchentes de 1983 e 1984, muitas medidas de prevenção foram planejadas e algumas até implementadas no Vale do Itajaí.

Ela cita, por exemplo, três barragens construídas no Alto Vale do Itajaí e um sistema de medição e alerta do nível das águas, destinado, principalmente, a proteger a cidade de Blumenau. Mas, acrescenta que, apesar dessas medidas, o risco de cheias não diminuiu.

Aprendendo com a Europa

"Apesar de estar comprovado que o uso desordenado do solo aumenta o risco de cheias em toda a região e de o Comitê de Gerenciamento da Bacia do Itajaí ter feito propostas de solução do problema, estas não foram implementadas pelo governo estadual", afirma Frank.

Questionada se o sistema de proteção usado na Suíça é conhecido na região, Frank responde que "sim, na discussão de medidas descentralizadas de contenção e prevenção de cheias. Atualmente esse tipo de medidas é divulgado no Brasil por renomados hidrólogos. Mas o Comitê do Itajaí tomou conhecimento delas em 1998, quando fez uma viagem de estudos à Suíça e à Alemanha, visitando diversos pequenos e grandes projetos na bacia do rio Reno, desde Zurique até Koblenz."

Não é por falta de idéias que o Vale do Itajaí continua vulnerável a catástrofes, como a que ocorreu em novembro. O problema é outro. "O maior desafio para a prevenção às cheias em países em desenvolvimento é controlar a ocupação do solo, diante do rápido crescimento populacional", diz Olivier Overnay, diretor do Departamento Federal de Proteção contra Enchentes da Suíça.

Mapas de risco para o lixo

Beate Frank têm dados que confirmam a avaliação do especialista suíço. "As montanhas do Baixo Itajaí são muito frágeis. Elas têm entre 600 milhões de 2,4 bilhões de anos. Por causa dessa fragilidade, em grande parte, não deveriam ser ocupadas. Mas, após as enchentes de 1983 e 1984, a urbanização dos morros se acelerou. Devido à falta de planejamento e fiscalização, muitos desses locais se tornaram zonas de risco, que, em parte estão mapeadas, mas não são interditadas pelas administrações municipais."

A pesquisadora menciona ainda dois outros problemas. Desde 1983, foram feitos mapas de risco de dez cidades ao longo do Rio Itajaí-Açu. "Até agora, apenas Blumenau, Gaspar e Rio do Sul respeitam esses mapas no zoneamento urbano."

E mais: apenas dois dos 52 municípios do Vale do Itajaí respeitam o Código Florestal, segundo o qual, ao longo de rios com até 10 m de largura, deve ser mantida uma faixa de proteção de 30 m; às margens de rios mais largos, 100 m. As imagens aéreas da catástrofe comprovam que o código é simplesmente ignorado.

"Nem as estradas federais e estaduais respeitam essa lei e, por isso, em parte, foram arrancadas pelos rios. Nossas cidades – estradas, casas etc. – estão construídas diretamente nas margens dos rios. A maioria se satisfaz com uma faixa de proteção de 5 m. Por isso, as enxurradas dos rios adjacentes causaram tantos estragos", explica Frank.

"Naturalizar" a catástrofe

As opiniões da pesquisadora de Blumenau e dos peritos do governo suíço coincidem num ponto: que não faz sentido atribuir a catástrofe unicamente à mudança climática. "Tudo indica que existe uma tentativa deliberada de 'naturalizar' a catástrofe, atribuindo-a a fatores que estão fora do alcance dos governos estadual e federal, para dessa maneira eximir esses governos da sua responsabilidade. Para os cientistas, é evidente que, até certo ponto, a catástrofe deve ser atribuída à falta de decisão e autoridade dos respectivos governos. E não é provável que isso mude", conclui Frank.

Na opinião de Bruno Schädler, "os governos não podem simplesmente lavar as mãos com a desculpa da mudança climática. Eles precisam investir mais no esclarecimento da população sobre os riscos, criar uma cultura do risco e também controlar a ocupação do solo. Nesse caso, impor a lei é uma questão de boa governança, de estabelecer um governo democrático e não corrupto".

swissinfo, Geraldo Hoffmann

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